quinta-feira, 19 de julho de 2012

TRÊS RAINHAS

                                                  Maria Angela Alvares Cacioli

Sou jornalista de formação. Trabalhei ultimamente em um jornal meia-boca e sou totalmente frustrada com minha profissão. Podem me chamar de amarga. Sabe quando você faz a faculdade dos seus sonhos, estuda com afinco, se forma com honra e entra no primeiro emprego entusiasmada, almeja um Pulitzer e já no primeiro ano percebe que medíocres ocupam os cargos melhores porque tiveram Q.I. altíssimo? Acho que todos conhecem a expressão Q.I., ou seja, “quem indica”: um diretor pagando um favor a um amigo, um político que ajudou a sustentar a Faculdade de Jornalismo do sobrinho, e por aí vai.
Comecei como estagiária em um Diário da vida, depois fui efetivada. Aí me chamaram em outra cidade para ser editora-assistente num Jornal novo. Pensei: se o Jornal crescer, cresço junto. Promessa de carreira ceifada quando o dono do dito Jornal foi morto a tiros um mês depois. O projeto gorou e o Jornal fechou. Lá estava eu de novo “disponível no mercado de trabalho” expressão de efeito que aprendi num curso de comunicação para designar “desempregada”.  
Bati perna, entreguei currículo em muitas portarias até que um amigo soube da minha situação e me chamou pra trabalhar com ele. Jornal grande, da Capital; funcionária comum, sem status, salário baixo mas grande satisfação; serviço que eu gostava e do qual me orgulhava quando via meu nome estampado junto com as matérias que fazia. Mas o tempo foi passando, a vida encarecendo e meu salário ainda baixo. Fui falar com o chefe. Nada. Comecei a ficar desgostosa mas continuava a trabalhar direitinho, com hora incerta pra entrar e totalmente imprevisível para sair. Tive que tomar muito táxi de madrugada pra chegar em casa às três da manhã e entrar novamente às nove horas no Jornal, porque tinha que fazer uma entrevista com algum notável que viajaria ao meio-dia. Hora-extra? Banco de horas? Que piada! E o salário baixinho, baixinho.
Comecei a fazer contatos. Ia casar, precisava de mais grana. Consegui o tal cargo de editora-assistente aquele que me foi tirado com a bala que matou meu patrão anterior só que num Jornal de menor circulação, menor visibilidade. Poucas matérias impressas, serviço burocrático. Fiquei vinte anos ali. Virei editora. Levantava pela manhã e me perguntava se queria ir trabalhar. Querer eu não queria, mas precisava. O salário do meu marido não era lá essas coisas, tinha dois filhos pra criar e, bom, aquela era minha carreira.
Com a demissão do meu marido, iniciou-se a fase do martírio da procura de recolocação. Ficamos dois anos na expectativa quando ele recebeu uma proposta irrecusável num polo industrial da Grande São Paulo, bem longe de onde morávamos. Entre muitas noites sem dormir, com os filhos já casados, eu de saco-cheio do trabalho, decidimos nos mudar. O salário dele dava muito bem para nos manter confortavelmente, sem luxos. Fiquei seis meses como dona-de-casa em tempo integral. Aquilo foi me dando uma angústia, uma falta de horizontes, que acabei concordando com os amigos: precisava voltar à ativa, fora de casa. Levei meu currículo para o jornal da pequena cidade. “Quem vai me querer?”, pensei, “quarenta e cinco anos nas costas, uma velha para o ramo”. Não deu dois dias e eles me chamaram para uma entrevista.
O chefe de Recursos Humanos me tratou na palma da mão. Saí de lá contratada. O salário, uma merreca, mas pelo menos dava pra pagar a empregada e me livrar do avental.
Comecei numa segunda-feira chuvosa. “Sinal de azar”, deduzi. Porque eu tenho muito essas coisas de pressentimento, sabe? Logo depois do almoço fui encarregada de cobrir a enchente no centro da cidade. Ah! esqueci de falar: voltei a ser uma simples repórter, dessas de cobrir até acidente de moto (pelo menos, trabalho não falta, porque é o que mais tem hoje em dia).
Passados uns quinze dias, o chefe mandou-me ir ao Cemitério Municipal porque ficara sabendo que lá estava sendo velado um sujeito e que tinha três viúvas no necrotério. Sinistro! Eu, uma ex-redatora indo cobrir um velório! Literalmente, ossos do ofício. Me senti um lixo.
Com toda minha indignação em baixo do braço mais o bloco de anotações, chamei o fotógrafo e fomos pro Cemitério. Entrei na sala com cheiro de vela e flores. Sentei-me e procurei puxar conversa com a senhorinha muito séria e pensativa que estava ao meu lado. É chato mas um dever de profissão. A velhinha começou meio reticente mas me deu toda a ficha do defunto.
Apontou-me discretamente as três mulheres em torno do caixão: as viúvas. Não sei porquê, imediatamente, veio-me à cabeça o nome de um filme argentino com um ator que eu adoro, o Ricardo Darín, chamado Nove rainhas. Pensei: “O título do artigo pode ser AS TRÊS RAINHAS”. Que bobagem! Não tinha nada a ver. 
E a velhinha engrenou. O cara tinha sido esperto: com dezoito anos foi morar com uma tia nos Estados Unidos; trabalhou lá e aprendeu a falar inglês muito bem. Ao voltar para o Brasil, uns quatro anos depois, foi contratado por uma grande empresa multinacional, uma vez que falar inglês fluentemente na década de sessenta abria muitas portas, dava até pra ficar rico. Casou com aquela ali. E me apontou uma mulher morena, muito bonita e de olhos exóticos e úmidos, que vestia um terninho cinza e estava do lado esquerdo do caixão. Tivera dois filhos com ela: um menino e uma menina.
Quando a filha estava com dezessete anos, ele largou a morena e casou com a secretária de dezoito anos. Então ela apontou a outra morena que estava do lado direito do caixão. Parecia que eu estava olhando para uma cópia da primeira, porque a segunda mulher era a primeira, vinte anos mais moça. Ambas tinham um semblante de pesar, embora só a primeira segurasse um lencinho nas mãos.
“Parece que ele quis refrescar a relação”, pensei divertida. Com essa ele tivera dois filhos homens. Aí a velhinha olhou através do vidro e apontou para os dois adolescentes que estavam encostados no muro, do lado de fora: são aqueles ali.
Ele era malandro mas era muito bom. Quando se separou da primeira esposa, deixou tudo pra ela, e olha que não era pouco. Começou do zero com a segunda, mas era chefão na empresa e logo tava rico de novo. Você acredita que ele alugava até jatinho? Pra ir jogar no Paraguai ou Uruguai, sei lá. E levava o irmão da mulher, o primo, parecia um nababo. Tinha casa chique na praia. Essa foi a desgraça!
A mulher estava me deixando curiosa.
Na praia ele conheceu a terceira mulher. Aquela ali, perto do pé do caixão. Outra morena: pequena, gordinha e feia. Diferentemente das outras duas, parecia que estava ali sem muita vontade, que velava um estranho e que não via a hora de ir embora. Ela vendia sorvete na praia!, a velhinha falou com um longo suspiro.
Mas eu disse pra você que ele tinha uma boa alma. “Agora bem volátil”, sussurrei e já me repreendi internamente pela falta de respeito. Não desamparou a segunda mulher também: deixou até uma empresa pra ela. E a casa de praia também.
Agora, essa terceira não teve tanta sorte, não. Ele perdeu o emprego e ela tinha que se desdobrar pra sustentar a casa. Ouvi até falar, que Deus me perdoe se eu estiver mentindo, que ela chegou a roubar dinheiro da sogra porque - ah! eu não te contei - as coisas ficaram tão pretas que eles precisaram ir morar com a mãe dele.
Acho que foi o desgosto que trouxe a doença pra ele. Imagina, depender da irmã e da mãe pra pagar médico e hospital!
Já estava querendo mudar o título da matéria para DUAS RAINHAS E UMA AIA. Estava explicada a diferença de expressões das três: as duas primeiras mulheres tiveram o melhor que ele podia oferecer. Numa comparação chula, ficaram com o filé e a terceira roeu o osso. Levantei porque percebi que a coisa ainda ia longe e já estavam olhando a gente com cara feia. Ia sair da sala para rascunhar minha matéria. Mas resolvi fingir que fazia uma oração e me aproximei do caixão para ver o defunto.
O rosto naturalmente envelhecera mas seus traços marcantes ainda permaneciam sob a pele cor de cera. E o câncer o deixara tão magro quanto na juventude. Senti tontura e desmaiei.
Nem imagino quem me levou pra enfermaria do Cemitério. Acordei na maca olhando para a cara de uma enfermeira que apertava o meu pulso.
- A senhora teve uma queda de pressão. Mas já a medicamos e a liberaremos daqui uma hora.
- Não, não posso ficar, repliquei e me ergui da maca. Tenho que entregar a matéria. Eu estou ótima.
- Matéria?!
- Sim, sou jornalista e vim cobrir o enterro do Sr. Jorge Antunes.
- Mas se a senhora não é parente, porque desmaiou?
- Estava muito abafado lá dentro. E aquele cheiro de flores, de velas, de morte...
- É, tem gente que não gosta mesmo. Mas a senhora tem certeza que não quer ficar no repouso mais um pouco?
- Absoluta. Meu chefe me mata se eu chegar atrasada pro fechamento do Jornal.
Levantei, disfarcei a tonteira, e saí da emergência com atuação digna de uma atriz. O fotógrafo teve que assinar um termo de responsabilidade pra me levar embora. Entrei no carro e não quis fazer qualquer comentário. Cheguei no Jornal, digitei a matéria no computador, enviei e pedi pro meu chefe me dispensar. Não estava muito disposta. Preocupado ele queria me acompanhar até em casa. Disse-lhe que não precisava, só que chamasse um táxi.
Cheguei em casa arrasada, pensando que eu era o elemento que faltava naquele reino: a boba-da-corte. Deitei na minha cama e chorei como uma adolescente. A mesma adolescente burra que, trinta anos atrás, por pura paixão, entregara sua virgindade e um amor tão ingênuo quanto intenso àquele defunto “galinha”.

Um comentário:

  1. Olá, Maria Ângela, tudo bem?
    Sou amiga da sua norinha Marcela e acabo de ler um pouco do que você publica neste seu blog... Adorei tudo! Parabéns! Muito bom mesmo...
    Bjos,
    Nayara

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