quinta-feira, 4 de outubro de 2012

USE AS REGRAS DE PONTUAÇÃO E SALVE SEU CASAMENTO

                                                                Maria Angela Alvares Cacioli                                                                                                                            

         Havia dois anos, eu sofrera um acidente de carro e minha coluna tinha sido seriamente afetada. Dores horríveis tornaram minha vida um inferno. Tudo fora tentado. Em vão. Até que, numa das minhas peregrinações por salas de espera de hospital, alguém falou-me de um parente que tivera problema semelhante e encontrara grande alívio com um novo tipo de tratamento fisioterapêutico chamado RPG, empregado pelo Dr. Olavo. Se eu já conhecia? Respondi que não: nem o tratamento nem o médico. Acabei ficando com o telefone do tal parente, para maiores informações. Quando liguei, o Seu Agenor falou-me maravilhas do Dr. Olavo: eu não deveria deixar de procurá-lo.
        Cheia de esperanças, marquei uma consulta pois eu ainda esperava por um milagre. A confiança que aquele médico demonstrou, quando o conheci, acabou por me convencer de que existia uma chance para o meu caso. Não seria um tratamento rápido, ele me alertou. No mínimo, um ano. Para isso reservei uma hora semanal na minha agenda. Com o passar dos meses as dores foram diminuindo e eu já podia viver sem os analgésicos. Em todas as sessões, o Dr. Olavo incentivava-me a continuar o tratamento e a minha visível melhora encorajava-me. Não faltei um dia sequer, pois tinha medo de um retrocesso.
        O convívio constante acabou por tornar a nossa relação bastante cordial. O seu  jeito educado de me tratar, sua fala mansa e olhar doce criaram uma teia ao meu redor: eu era o inseto indefeso e ele a aranha voraz. Não, ele não era voraz: eu é que sempre tivera tendência a me deixar envolver. Carência, talvez. Esta necessidade imperiosa de ser aceita pelos outros. Por que não fico intimamente contente com minhas realizações, precisando invariavelmente da aprovação das pessoas que me rodeiam? Necessidade de autoafirmação, desejo de sentir que importo para alguém, sei lá! E ele era tão gentil!
Numa determinada manhã de quinta-feira, dia de tratamento, nem me dei conta de que estava cuidando de modo especial da minha aparência. Eu era uma mulher de meia-idade, a quem precisava impressionar? Que motivo secreto estava me movendo? Talvez o espelho que me olhava pudesse responder. Às dez horas, saí de casa. O trajeto até o consultório, que normalmente não me tomava mais do que vinte minutos, arrastou-se por quase uma hora. Na rua havia caminhões demais, carros velhos vagarosos demais e eu com paciência de menos, querendo chegar logo. “Meu Deus, preciso me controlar!”  Fiz com perfeição a manobra para colocar o carro na vaga estreita. Estaria ele reparando nisto? “Seja dona de seus atos”, pensei e desci do carro procurando andar com elegância: ele poderia estar olhando. Fiquei frustrada quando a porta de vidro foi aberta pela recepcionista. Olavo nem estava ali. Tanto charme jogado fora. Tola. Aguardei para ser atendida. Com aquele olhar que parecia querer se esquivar enquanto me encarava, Olavo veio até a recepção e chamou pelo meu nome. Eu gostava desse seu modo pessoal de tratar os pacientes. Segui-o até sua sala. Achava educado ele virar-se de costas enquanto esperava que eu despisse parte de minhas roupas. Minha cabeça rodava. Deitei-me de bruços sobre a maca forrada com um lençol cor-de-rosa. Suas mãos começaram a percorrer minha espinha. Senti um leve tremor. Ele notara? Eu não sabia se queria deixar transparecer ou ocultar a minha ansiedade. Estava ao mesmo tempo surpresa e assustada com meus pensamentos e com as reações de meu corpo de mulher, que deixavam a pele levemente suada e a circulação acelerada. Olavo agia profissionalmente; se percebeu alguma alteração, não demonstrou. Enquanto me comprimia com seus dedos experientes, puxou conversa sobre as notícias da semana. Ainda bem! Eu precisava de algo para afugentar meus desejos. Obedeci sua ordem de levantar-me como um autômato. Vesti-me enquanto ele recolhia o lençol usado e pegava outro no armário branco de fórmica. Virei-me para apanhar a bolsa. Foi quando ele também se virou. Esbarramos involuntariamente um no outro. Ergui meus olhos (traidores!) e encontrei os dele perscrutando meu rosto. Entre as reticências e as vias de fato foi tudo tão rápido, tão inesperado. No instante seguinte eu estava em seus braços e nossas bocas se procuraram com sofreguidão. Desvencilhei-me de seus braços e saí atordoada, deixando-o plantado ali, com as palavras suspensas nos lábios. Sabia que se ficasse estaria para sempre presa (ah!, a teia). Segui pelo corredor, passei a porta a ganhei a rua. Entrei no carro. Sentia remorso, pensava em meu marido. Sim, eu era casada havia vinte e dois anos e aquilo nunca acontecera antes. Eu estava apavorada.
Voltando para casa, comecei a me acalmar e refletir. Não adiantava procurar pelo culpado. Não havia culpa. Eu precisava me convencer disso. Repassei a cena. Sorri. Sentia-me novamente mulher, sentia-me novamente jovem. Era uma conquista para mim, apesar da situação criada. Se eu não contasse para ninguém, nada mudaria na minha vida. Aquilo havia sido apenas um descuido. Era só encarar como uma pequena travessura. Mas será que eu poderia conviver com ela?  Será que eu poderia tornar a ver Olavo, explicando-lhe que tudo deveria parar por ali? A minha tortura íntima não era o ocorrido em si; incomodava-me ter gostado da situação, ter-me sentido novamente cheia de vida enquanto seus lábios fundiam-se aos meus e nossos corpos se colavam, acendendo algo que minha memória quase esquecera. O que acabou se tornando um pesadelo, com o passar dos dias, foi a vontade que eu tinha de que tudo acontecesse novamente. E eu estava convicta de que não podia. O olhar inocente do meu marido me cruxificava. O deslize tinha sido acidental mas deixaria de sê-lo, caso se repetisse. Pus fim nas possibilidades e no tratamento, alegando já estar curada.
Passaram-se muitos anos. Mesmo tendo aprendido a aceitar mais as falhas humanas, meu “caso” nunca foi bem assimilado pela minha consciência. Se consegui ocultar o fato de todos, nunca pude escondê-lo de mim mesma.
Na noite deste último sábado, como estivesse um tempo chuvoso e frio, meu marido abriu uma garrafa de vinho e acendeu a lareira. Sentados no tapete da sala, em torno da mesa de centro, ficamos conversando até que, instigada pela perigosa mistura de calor e álcool, parecendo querer “cutucar onça com vara curta”, perguntei se ele já havia me traído. Rindo, Heitor alegou que, quando éramos noivos, ele havia beijado uma colega da Faculdade. Isso era traição? Ante meu olhar perplexo, ele justificou-se:
– Mas foi só um beijo, Nininha.
- Só um beijo?, indignei-me
- Só um beijo, ele retrucou.
- Só um beijo!, exclamei,  para logo em seguida acrescentar, confirmando:
- Só um beijo. E pensei em Olavo.  
        Aproveitando o gancho, de meu marido emprestei a fala para realizar a minha catarse. Ele nem percebeu a sutileza da transmutação: da interrogação passei à exclamação e arrematei com um ponto final, tornando minha frase uma confissão. Eu falei tudo, sem dizer nada. Toda velha culpa se dissipou com o uso simples e adequado da pontuação. Perdoei Heitor e me perdoei. Estamos quites.

2 comentários: