quinta-feira, 1 de outubro de 2015

COMPREI A CASA DO CAIO F.

Entrei em seu quarto silencioso. Mobília espartana, com móveis envernizados na cor canela. Beiradas arredondadas, sem puxadores. Uma cômoda comprida na parede esquerda, um guarda-roupas baixo, de aproximadamente um metro e meio de altura, só com gavetas. Na parede direita, a preciosidade: sua estante, sem vidros, sem portas, livros expostos para estarem sempre à mão. Os grandes - um de capa azul aço, com beiradas de páginas escorregando da brochura – ficam na frente. Atrás, enfileirados pelo comprimento, os outros.
Fico imaginando quanto ele os folheou, quanto daquele conteúdo todo foi filtrado pelo seu talento e escorreu para dentro de seus contos, crônicas, romances.
Noto que não existe televisão naquele pequeno quarto. Para quê? Só tiraria a concentração de um gênio. E também, concluo, sua cabeça devia viver tão povoada de ideias, pensamentos, que o aparelho seria supérfluo.
Sento na cadeira que está junto à mesa redonda, com gavetas que se abrem sob o tampo. Em uma delas, encontro um lápis de pedreiro, azul marinho, apontado a estilete, irregularmente. Seguro-o entre meus dedos. Para que serviria um lápis de pedreiro a um escritor? E olhe que ele está gasto, quase um toco.
Passo de leve, em reverência, minha mão sobre os objetos da gaveta. Pertenceram a ele e agora estão ali, inertes, inúteis. Terei coragem, algum dia, agora que tudo aquilo me pertence, de macular esse santuário? De usar aquela mesa-escrivaninha para apoiar meu notebook e escrever meus próprios contos?
Na dúvida, saio do lugar.
Lá fora, está um dia meio nublado, de temperatura agradável.
Muita gente já chegou. Hoje será a inauguração da ‘casa nova’, que ainda está em meio à reforma.
No galpão que foi construído ao lado da churrasqueira, nada pôde ser colocado, porque o pedreiro, com sua natural lerdeza, não concluiu o piso, que ainda está só na fase do pedregulho e areia. Esbarro em meu pai, que acabou de chegar, mas continuo a olhar fixamente para o chão, e daí, para o telhado rústico. Cadê as rosas do Caio que enfeitavam aquele pedaço do quintal? Aquele telhado impediria a passagem do sol, não permitindo que elas crescessem viçosas, como ele gostava. Caio tinha um roseiral, bem ali, onde será o galpão. Eu preferia as rosas; não gosto de churrasco.
Caminho alguns passos e posso entrever, pelo vão da porta, o espaço da cozinha da churrasqueira atulhado de gente que bebe e ri, ri muito. Um alvoroço.
Topo com o companheiro de Caio, à época de sua morte. Seu rosto me é tão familiar! Ah! ele é parecido com o namorado do Jorge, primo de uma amiga minha. Ele está tão sorridente! Conta-me que era seu plano e de Caio, fazer, naquele espaço à nossa frente, uma garagem para o carrão que ele comprou. Fico me perguntando se o plano era mútuo. Acho que Caio nunca dirigiu um carro; preferia o táxi. A alegria daquele ‘quase senhor’ me incomoda. Andar por um lugar em que você viveu com uma pessoa que já se foi, tragicamente levada cedo demais por uma doença maldita, não o abala?

Olho para seus lábios sorridentes e seus olhos brilhantes. Retribuo com meu olhar soturno. Será que ele não percebeu que carrego, dentro de mim, a alma de Caio?



Publicado também em:   http://www.recantodasletras.com.br/contos/5400792


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