Entrei
em seu quarto silencioso. Mobília espartana, com móveis envernizados na cor
canela. Beiradas arredondadas, sem puxadores. Uma cômoda comprida na parede
esquerda, um guarda-roupas baixo, de aproximadamente um metro e meio de altura,
só com gavetas. Na parede direita, a preciosidade: sua estante, sem vidros, sem
portas, livros expostos para estarem sempre à mão. Os grandes - um de capa azul
aço, com beiradas de páginas escorregando da brochura – ficam na frente. Atrás,
enfileirados pelo comprimento, os outros.
Fico
imaginando quanto ele os folheou, quanto daquele conteúdo todo foi filtrado pelo
seu talento e escorreu para dentro de seus contos, crônicas, romances.
Noto
que não existe televisão naquele pequeno quarto. Para quê? Só tiraria a
concentração de um gênio. E também, concluo, sua cabeça devia viver tão povoada
de ideias, pensamentos, que o aparelho seria supérfluo.
Sento
na cadeira que está junto à mesa redonda, com gavetas que se abrem sob o tampo.
Em uma delas, encontro um lápis de pedreiro, azul marinho, apontado a estilete,
irregularmente. Seguro-o entre meus dedos. Para que serviria um lápis de
pedreiro a um escritor? E olhe que ele está gasto, quase um toco.
Passo
de leve, em reverência, minha mão sobre os objetos da gaveta. Pertenceram a ele
e agora estão ali, inertes, inúteis. Terei coragem, algum dia, agora que tudo
aquilo me pertence, de macular esse santuário? De usar aquela mesa-escrivaninha
para apoiar meu notebook e escrever
meus próprios contos?
Na
dúvida, saio do lugar.
Lá
fora, está um dia meio nublado, de temperatura agradável.
Muita
gente já chegou. Hoje será a inauguração da ‘casa nova’, que ainda está em meio
à reforma.
No
galpão que foi construído ao lado da churrasqueira, nada pôde ser colocado,
porque o pedreiro, com sua natural lerdeza, não concluiu o piso, que ainda está
só na fase do pedregulho e areia. Esbarro em meu pai, que acabou de chegar, mas
continuo a olhar fixamente para o chão, e daí, para o telhado rústico. Cadê as
rosas do Caio que enfeitavam aquele pedaço do quintal? Aquele telhado impediria
a passagem do sol, não permitindo que elas crescessem viçosas, como ele
gostava. Caio tinha um roseiral, bem ali, onde será o galpão. Eu preferia as
rosas; não gosto de churrasco.
Caminho
alguns passos e posso entrever, pelo vão da porta, o espaço da cozinha da
churrasqueira atulhado de gente que bebe e ri, ri muito. Um alvoroço.
Topo
com o companheiro de Caio, à época de sua morte. Seu rosto me é tão familiar!
Ah! ele é parecido com o namorado do Jorge, primo de uma amiga minha. Ele está
tão sorridente! Conta-me que era seu plano e de Caio, fazer, naquele espaço à
nossa frente, uma garagem para o carrão que ele comprou. Fico me perguntando se
o plano era mútuo. Acho que Caio nunca dirigiu um carro; preferia o táxi. A
alegria daquele ‘quase senhor’ me incomoda. Andar por um lugar em que você
viveu com uma pessoa que já se foi, tragicamente levada cedo demais por uma
doença maldita, não o abala?
Olho
para seus lábios sorridentes e seus olhos brilhantes. Retribuo com meu olhar
soturno. Será que ele não percebeu que carrego, dentro de mim, a alma de Caio?
Publicado também em: http://www.recantodasletras.com.br/contos/5400792
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