quinta-feira, 2 de agosto de 2012

MEU ANJO

                                                      Maria Angela Alvares Cacioli - 23/03/2012

                           Outono, inverno, sei lá. Tá frio, mãe. Olha lá, vai começar o programa. É proibido pra criança. Vai dormir com teu pai, vai. Mas eu queria ficar aqui. Não pode: é muito forte. Vai, vai indo. Na tela, Jacinto Figueira Jr. - O Homem do Sapato Branco - diz que as cenas serão fortes. Só uma vez ela deixou eu ficar. Era um programa feito num matadouro. Forte não, estarrecedor. Fui deitar com meu pai.
                          Nossa, como você está gelada. Vem cá meu anjo. O corpinho macio, cheirando a bebê, se aconchega no pai. Encosta os pezinhos nos do papai, que logo esquenta. Põe as mãos aqui pro papai esquentar.
                          Na sala, a mãe assiste ao programa cruel com nome de pureza: sapato branco. Na cama, a menininha aquecida, adormece.
                          E cresce. Sempre com frio. O pai olha pra ela: é a mãe renovada.
                          Arruma o primeiro namorado. Não engata. O segundo também não. Já com o terceiro a coisa parece séria.
                          Antes que qualquer coisa possa acontecer o pai sentencia: o primeiro homem da minha filha tem que ser eu. A mãe nada diz. Foi assim com as outras duas filhas, agora casadas, morando bem longe.   
                           E o Anjo-da-guarda do anjo do papai fecha os olhos outra vez.
                           E mais uma vez. Mais duas. Mais não sei quantas.
                           A faca de churrasco ela pega no armário. O quarto parece um matadouro.
                           Desgraçados, vão queimar no inferno, que com Deus eu me entendo.


            Na pós-graduação que estou fazendo, um dos módulos estudava a Literatura contemporânea, mais especificamente contos dos escritores denominados Pós-utópicos, uma novidade para mim. Algumas de suas características, entre outras, são urbanidade, solidão, ambiguidade, contundência, sexualidade exacerbada ou grotesca, pouca extensão e adjetivação; são, portanto curtos e enxutos. Então decidi escrever um conto pós-utópico e me atrevi a submetê-lo à apreciação do professor. Ele aprovou!

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