sábado, 8 de junho de 2013

JACIRA

                                     FOME DE SONHO

                                                                                                                                                                    
Jacira nascera pobre como todos os vizinhos que a cercavam. Miséria esparramada pelas ruas de terra e esgoto a céu aberto. O pai morreu tísico quando ela ainda não completara três anos. A mãe gastava as mãos de tanto lavar roupa para poder sustentar os cinco filhos. Em ordem decrescente de idade, Jacira era a segunda, nascida seis anos depois da primeira filha do casal, seguida pelos gêmeos Miguel e Moacir e pelo pequeno Jackson, que já viera ao mundo sem pai, uma vez que este deixara a mãe com barriga quando resolveu que devia partir. porque já sofrera demais. Sem consideração aquele homem que a menina nem chegou a conhecer direito! Morrer e deixar seis bocas sem ter o que comer.
Bem que Augusta tentou manter a família junto. A filha mais velha, Maria Antonia, que todos chamavam de Tonha, com apenas dez anos, ficou incumbida de tomar conta da casa. Cuidava dos irmãos como se fosse mãe. Tanta responsabilidade para tão pouca idade! Augusta saía cedo, enfrentava filas nos pontos de ônibus, sempre lotados às seis horas da manhã. Passava o dia esfregando roupa suja dos mais abastados para comprar o que não bastava para encher o estômago das suas crianças. Aquilo não era vida. Bem fizera o seu amado Graciliano. Nunca ela pensava nele com rancor. Coitado, mesmo com a saúde tão frágil trabalhara até o fim para poder dar à família um pouco de dignidade. “Que Deus o tenha”, balbuciava ela enquanto balançava o corpo dolorido ao sabor das arrancadas e freadas do motorista. Voltava para casa cansada e desanimada.
Naquela noite Augusta chegou e percebeu que havia algo errado. Tonha fizera os dois meninos tomar banho e eles já estavam na cama. O bebê chorava em seu colo enquanto a menina andava de um lado para o outro do minúsculo cômodo, tentando acalmá-lo. Jacira, sentada na cama, assistia a tudo sem nada entender com sua cabecinha de quatro anos. A mãe pegou o bebê e levou imediatamente a mão à testa do pequeno rosto congestionado do garoto. Ele ardia em febre. Augusta ordenou à franzina Tonha que enchesse uma bacia com água morna para banhar o pequerrucho. A madrugada chegou e encontrou o quarto iluminado pela luz fraca que vinha do abajur. As quatro crianças dormiam enfileiradas na cama de casal que ocupava quase todo o quarto. O bebê estava aconchegado no colo da mãe que adormecera meio torta na poltrona de pé quebrado, que ficava a um canto. Augusta estremeceu, acordou e, ainda meio atordoada pelo cansaço, não conseguiu se recordar de imediato porque se encontrava ali sentada. O corpo do bebê pesava sobre o seu peito. Lembrou então da febre e encostou a mão na fronte muito branca da criança. Estava fria. Fria demais, concluiu. Ergueu o corpinho inerte e então soube o que acontecera. Um grito rouco saiu de sua garganta, acordando os pequenos que sentaram na cama assustados. Levantou-se da poltrona e chacoalhava, entre soluços, o corpo da criança para ver se podia lhe restituir a vida. Somente Tonha se deu conta da tragédia e chorou como se perdesse o próprio filho.
Vida maldita! Falta de dinheiro, falta de conforto, falta de tudo. Aquelas crianças cresceram carentes de comida, carentes de afeto. Augusta não tinha tempo de lhes dar carinho. Nem tempo, nem vontade. A perda do marido e do caçula fizeram a sua vida ficar como uma corda roída no começo e no fim. O passado se fora, o futuro era obscuro. Só restava o presente sofrido. Nela, o amor murchara antes mesmo de desabrochar. Tornou-se uma pessoa amarga, que descontava nos filhos o peso de seu infortúnio. Tonha revoltava-se com a situação. Ela, que cuidava praticamente sozinha dos três, nunca levantara um dedo sequer para maltratá-los. Doía-lhe no próprio corpo ouvir o estalar das palmadas da mãe na pele fina das crianças. Foram seis anos de discussões cada vez mais acaloradas até que o ambiente ficou insuportável. Num domingo à tarde Tonha arrumou suas parcas roupas numa trouxa, beijou as crianças com lágrimas nos olhos e deixou para sempre o barraco apertado. Caiu no mundo. Jacira nunca mais ouviu falar dela. Provavelmente foi ser prostituta num antro qualquer, muito embora sua devoção a crianças poderia tê-la tornado uma ótima babá.
Jacira, então com dez anos, assumiu naturalmente as funções da irmã que partira. Lavava, passava, cozinhava e cuidava dos dois irmãos. Escola, nem pensar. Augusta ficava fora quase que o dia inteiro e exigia tudo arrumado quando chegasse em casa. Jacira acomodou-se com a rotina imposta.
 “Ainda bem que você não é geniosa como a sua irmã”, dizia a mãe. Eram as palavras mais carinhosas que Augusta se permitia proferir.
Aprisionada em seu espaço reduzido, a miúda Jacira crescia em sonhos. Quando pegava a vassoura para tirar a poeira do cubículo em que moravam, fantasiava estar dançando uma valsa. A vassoura era um lindo e gentil príncipe que a convidava para visitar seu castelo no alto de uma montanha encantada. Era tirada de seu devaneio pelos gritos agudos dos irmãos que disputavam a posse de uma bola de capotão estourada, que tinha sido encontrada no lixo, ou pelos berros da vizinha que brigava com o marido bêbado. Certamente na casa do príncipe não havia tanta discussão. Lá só deviam ser ouvidos o trinar dos pássaros e o burburinho de fontes refrescantes, como mostravam as figuras desbotadas dos velhos livros infantis que a mãe ganhava de alguma patroa mais bondosa que achava estar fazendo um bem enorme às pobres crianças da empregada ofertando-lhes coisas que não serviam mais pra nada mesmo. Ah! Aquele calor infernal! Aquele cheiro podre da água parada do esgoto que passava por trás de seu mísero lar! A realidade era dura demais para ser levada a sério.
Depois de dois anos que Tonha fora embora, Jacira já quase nem se lembrava do que era amor. Ele só existia em sua cabecinha sonhadora.
Augusta começou a sentir muita dormência nas mãos. O médico do posto de saúde disse que era problema de coração. Era só o que faltava! Como esfregar roupa com aquelas mãos que de vez em quando pareciam desaparecer? Ela foi ficando cada vez mais fraca, a respiração difícil. Preocupava-se com Jacira. Os dois meninos já estavam crescidos, eram espertos, podiam se virar catando papelão na rua em troca de um prato de comida. Mas e Jacira? Tão frágil, tão pequena, tão avoada.
A comadre Brígida veio com a solução. Ela não era madrinha da menina? Por que Augusta não deixava Jacira ir morar com ela? A garota podia fazer o serviço em troca de casa e comida. Não pensasse a comadre que ela ia ser tratada como empregada, não. Era apenas uma troca de favores.
Agradecida, Augusta não titubeou em aceitar a oferta. Sentia-se cada vez mais fraca e caso viesse a faltar, o que achava que seria em breve, a filha ficaria amparada. Que alma boa, essa comadre Brígida!
O esperado não tardou a acontecer. Depois de dois meses que Jacira foi para a casa da madrinha, sua mãe morreu. Incrível como o comportamento da madrinha se modificou. Ela agora se sentia a dona da menina. Exigia que a pequena trabalhasse como um adulto, não lhe poupando desacatos e desmandos, nunca ficando satisfeita por mais que a pequena se esforçasse. Jacira se encolhia de medo. Ela não era de se rebelar. Não tinha a fibra de Tonha. Como ela pensava na irmã! Seria a única pessoa no mundo com quem poderia contar, caso ela não tivesse desaparecido. Os dois irmãos provavelmente iriam para um orfanato. Desamparada e assustada, ela chorava toda noite. Quando a mãe era viva, seu mundo era frio, mas agora era também negro. Não lhe sobrara um ponto de referência. Não tinha mais família. Estava só.
De tanto ver a menina chorar, a comadre Brígida acabou se irritando. Não queria cara feia na sua casa. Por isso resolveu entregá-la para uma amiga sua. Ah! Lá a garota aprenderia a dar valor à bondade da madrinha e provavelmente se arrependeria de tanta ingratidão. No sábado, depois do almoço, mal terminaram de sair da mesa, Brígida deu ordem para Jacira arrumar a sua mala porque as duas iriam passear.
Surpresa com a notícia, Jacira até esboçou um sorriso. Será que a madrinha voltara a ficar boa? Apressou-se em colocar numa sacola plástica os dois vestidos rotos que trouxera junto com alguma roupa de baixo e o sapato gasto. Era toda a sua bagagem. Tomou o ônibus na esquina como se fosse fazer a grande viagem de sua vida. Depois de uma hora serpenteando por bairros desconhecidos, sacolejando em ruas cheias de buracos, chegaram a uma avenida asfaltada, no centro da cidade. Jacira estava encantada com as construções sólidas, bem cuidadas que via, enquanto cobriam a pé os dois quarteirões que separavam a rodoviária da casa da amiga da madrinha, para onde estavam se dirigindo. Tudo era tão diferente daquilo que estava acostumada a ver: casebres pendurados em morros decadentes com crianças sujas correndo por ruelas de barro. Aqui ela quase se sentia a princesa das suas estórias de fadas.
Chegaram defronte a um sobrado e tocaram a campainha. Um negro espadaúdo veio abrir a porta, perguntando a quem deveria anunciar enquanto olhava a menina com um sorriso felino preso no canto da boca. Parecia um gato olhando sua presa. Mas Jacira nem percebeu o sentido oculto daquele ricto. O “Sentinela”, como mais tarde Jacira veio a saber que era o apelido daquele homem, sumiu por detrás da porta entreaberta para logo reaparecer e fazê-las entrar. Na sala ampla, com iluminação indireta e paredes recobertas de cetim rosa, esperava-as um senhora de uns sessenta anos, vestida com um négligée também rosa, de arminho nas bordas. Jacira jamais vira alguém vestido assim. Parecia-lhe mais uma vez estar entrando numa daquelas estórias encantadas. Aquela sem dúvida deveria ser a rainha-mãe. Ela não sabia o quanto estava perto da verdade. Aquela era realmente a rainha, mas de um castelo um pouco diferente do pintado em seu livro.
Brígida falou com a amiga numa espécie de código. Jacira não conseguia decifrá-lo. Ouviu que se falava em dinheiro, em porcentagem, mas aquilo não lhe interessava. Ficou prestando atenção ao movimento quase sutil do lugar, às moças que, de mãos dadas com homens bem arrumados, subiam as escadas entre sussurros. Aquilo tudo era muito misterioso. Nunca Jacira vira um ambiente tão sofisticado para os seus padrões, nem pessoas tão bem vestidas. O ar tinha um cheiro adocicado de perfume e tabaco e aquela penumbra estava lhe dando tanto sono! Acabou por dormir, afundada na poltrona macia forrada de veludo carmim.
Quando acordou viu que estava sozinha na sala e ficou com medo. Levantou-se num sobressalto para ver o Sentinela de braços cruzados, em pé, ao lado da porta fechada da rua.
– Onde está minha madrinha? – perguntou ela assustada.
– Já foi embora – respondeu seco o homem que parecia mais negro na meia-luz da sala.
Aparvalhada, Jacira não sabia o que fazer. Então a rainha-mãe entrou na sala e, com voz açucarada, explicou-lhe que ela ficaria ali por uns tempos, conforme desejo da madrinha. Segurando-lhe a pequena mão descarnada, Charlotte levou-a até um quarto que ficava depois da cozinha.
– Aqui será o seu quarto –  disse-lhe abrindo um pequeno guarda-roupa que ficava a um canto. – E estas são as suas roupas.
– Mas eu trouxe meus vestidos – retrucou Jacira.
– Pode jogá-los fora – argumentou a velha ao ver os farrapos que a menina trouxera e lembrando-se que suas roupas já tinham sido assim um dia. Com um sorriso bondoso nos lábios, Charlotte indicou-lhe onde ficava o banheiro, entregou-lhe uma toalha cheirosa, sugerindo-lhe um bom e demorado banho.
Jacira nunca vira tanto luxo em sua vida. “Aquilo era mil vezes melhor que a casa da madrinha e dez mil vezes melhor que a sua própria casa, quando ainda a tinha”, pensou. E ficou feliz por ter sido levada para lá. Mergulhou na banheira cheia de água e ensaboou o corpo miúdo com força como se quisesse tirar da pele as lembranças ruins. Depois de meia hora estava com as extremidades dos dedos parecendo uvas-passas. Enxugou-se com a toalha felpuda e estranhou ter tido tanto tempo para cuidar de si. A madrinha ficava batendo na porta, reclamando da conta de água e de luz, enquanto não a ouvisse desligar o chuveiro. Colocou um vestido estampado com bolinhas pequenas e, com o cabelo escorrido, atravessou o corredor até a cozinha.
– Ora, ora, se não é a nossa nova hóspede que aparece – ouviu a morena Eulália dizendo. – É melhor você ir pra sala que está todo mundo esperando a comida que eu já vou servir.
Jacira foi atrás da mulher forte e cheirando a fritura que seguiu para a sala de jantar carregando uma enorme travessa de bifes. Sentou-se no lugar indicado por Charlotte que lhe disse o nome de cada uma das moças sentadas em volta da mesa. Apresentou-lhe ainda a cozinheira Eulália e o guardião de todas, o Sentinela.
Acabando de comer, todas as moças retiraram-se para os seus quartos a fim de prepararem-se para a noite de sábado, que era a mais movimentada do lugar. Charlotte explicou então a Jacira que a função daquelas meninas, que ela queria como filhas, era fazer os homens felizes. Jacira não deveria entrar na sala depois que o primeiro cavalheiro chegasse até que o último saísse. Era a regra que ela deveria seguir à risca para não ter maiores problemas. Jacira assentiu com a cabeça e foi dispensada para poder ajudar a cozinheira a lavar a louça. Essa seria a sua função na casa: ajudar Eulália no que fosse preciso, até ter idade para “subir de posto”. Jacira se perguntou o que aquilo poderia querer dizer. Será que um dia ela seria a governanta daquele lugar, como naquelas casas em que a mãe lavava roupa?
Às nove horas da noite a garota já estava em seu quarto. O dia fora agitado e ela logo pegou no sono. Às seis da manhã, Jacira já estava de pé, como era costume na casa da madrinha. Só encontrou Eulália, entretida com o ferro de passar. Esta explicou-lhe que ali o dia começava cedo só para elas duas. O Sentinela, bem como as moças e Charlotte, iam dormir quando começava a amanhecer e, portanto, precisavam acordar tarde.   
Não foi difícil para Jacira acostumar-se à nova rotina. O trabalho pesado ficava por conta de um sujeito que vinha duas vezes por semana fazer a faxina. Charlotte o contratara há quinze anos depois de ter tido problemas com seu antecessor que estava sempre de olho nas meninas. Como Josué parecia não gostar muito delas, era o ideal para estar próximo do principal patrimônio da casa. Eulália encarregou Jacira de lavar a verdura, escolher o arroz, lavar a louça e outras pequenas incumbências que lhe pareciam até brincadeira perto do que a madrinha a obrigava a fazer. Como era calada e discreta, as meninas não se importavam com a sua presença enquanto ficavam jogando cartas e trocando confidências na sala rosa, à tarde, antes de começar o expediente. Os assuntos mais picantes elas deixavam para quando o trabalho de Jacira era solicitado na cozinha. Consideravam-na pequena demais para as cruezas da vida.
Jacira passou a ser a mascote da casa. As meninas tratavam-na como uma irmãzinha e Charlotte doou-lhe todo o seu amor maternal. Até o Sentinela parecia existir para proteger a pequena órfã. Jacira nunca se sentira tão feliz, tão cercada de carinho. Finalmente o reino encantado se fizera real. Suas roupas já não eram os farrapos que costumavam cobrir-lhe o corpo raquítico. Também o corpo já não era o mesmo: ela ganhara peso e suas faces, antes emaciadas, tornaram-se rosadas e cheias de viço. O lugar era limpo e a mesa bem servida. Jacira quase se esqueceu da penúria do barraco escuro e dos gritos que as paredes finas não filtravam. O ar pútrido fora substituído pela fragrância dos perfumes baratos. Era um grande progresso.
No seu aniversário de treze anos, Jacira assoprou, pela primeira vez na vida, as velinhas de um bolo de aniversário. Ganhou também um par de sapatos e um vestido novo das meninas, que se cotizaram para comprá-los. De Charlotte, recebeu uma correntinha de ouro com medalhinha de santo. Aquilo parecia um sonho: uma festa de verdade com guaraná e brigadeiro. E presentes. E pessoas que sorriam para ela, desejando “Felicidades”. Aquele foi o melhor dia de sua vida.
A primeira menstruação de Jacira aconteceu quando faltavam dois meses para ela completar o seu décimo quarto aniversário. Estranhamente, a madrinha Brígida apareceu para uma visita, no meio da semana seguinte. Mostrava-se risonha e procurava aproximar-se da menina como se tivessem mantido contato por todo aquele tempo. Depois que ela foi embora, Jacira ouviu comentários velados das meninas sobre a presença da madrinha ali. Elas suspendiam as conversas quando Jacira se aproximava e olhavam-na de um modo diferente, o que fazia a adolescente pensar que estava sendo evitada. À noite, deitada no escuro de seu quarto, Jacira chorava sem entender o que estava acontecendo. Por que, de uma hora para outra, parecia que ela deixara de ser a queridinha de todos?
Enxugando as lágrimas ao ouvir batidas na porta, Jacira nem teve tempo de levantar da cama e Charlotte já se insinuava para dentro de seu pequeno quarto.
 – Por que você está chorando? O que lhe fizeram?
 Jacira tentou explicar a sua mágoa, mas recomeçou o choro e redobrou os soluços. Vendo a angústia nos olhos da menina, Charlotte sentou-se na beirada da cama e puxou o corpo pequeno para junto de si. Abraçou-a, secou o seu rosto e encarando-a começou a explicar:
– Você não deve ficar triste. Deveria, sim, estar orgulhosa e feliz porque finalmente chegou a hora de você “subir de posto”.
Jacira lembrou-se vagamente de ter ouvido a expressão no seu primeiro dia naquela casa. Não pensara mais nela, até aquele momento; afinal, qualquer que fosse o significado, aquilo não poderia fazê-la mais realizada do que já era. Tinha ali tudo – e muito mais –  que jamais sonhara ter um dia. Infelizmente não sabia que aquele termo iria mudar sua vida para sempre. Charlotte pigarreou antes de continuar:
– Você sabe que as meninas da casa são muito bem tratadas e não querem voltar para os lugares pobres de onde vieram. Vivem aqui com conforto porque são gentis com os senhores que nos visitam. Agora que você já é uma mulher, deverá também agradar aqueles senhores e com isso garantir o seu sustento, se é que você quer continuar morando aqui. A partir de amanhã, você deverá ficar na sala rosa, junto com as meninas, e não precisará mais ajudar a Eulália. Você tem que ser limpa e perfumada e deve manter um sorriso nos lábios.
Jacira encarava Charlotte com uma interrogação nos olhos. Continuar na casa. Que opção ela tinha? Não havia outra casa para onde voltar: aquela era a sua casa. E o que a rainha-mãe queria dizer com ela já ser uma mulher? Pelo que ela soubesse ela já nascera mulher. Charlotte não acolhera a menina à toa. Ela até que se apegara à criança, mas não podia deixar o coração ocupar o lugar da razão: era uma empresária e precisava fazer seu negócio dar lucro. E Brígida não a deixaria esquecer o acordo. Foi com esse pensamento que a velha levantou-se da cama, fechou a porta e saiu do quarto, deixando Jacira com a cabecinha zonza por não saber nem ao menos formular as perguntas para as dúvidas que tomavam conta de si. Sonhou com a mãe batendo nos irmãos e brigando com Tonha. Acordou no meio da madrugada e chorou de saudades da irmã.
Assim que as meninas se levantaram, vieram procurar por Jacira que ficara a manhã toda sentada no banco da cozinha, acompanhando com o olhar o trabalho de Eulália que não a deixara lavar uma xícara sequer, conforme orientação de Charlotte. Elas a puxaram para a sala e começaram a enrolar os seus cabelos curtos e a escolher a cor do esmalte para pintar suas unhas. Talvez por terem experimentado cedo demais o lado amargo da vida, as meninas haviam-na poupado, até aquele dia, de detalhes aprofundados sobre o que faziam com os senhores distintos que as acompanhavam escada acima. Entre risinhos maliciosos, foram despejando uma bacia de informações sobre como agir com esse ou aquele cavalheiro, o que cada um mais gostava e etc. etc. etc. A menina escutava e ia ficando cada vez mais apavorada. Não conseguiu colocar comida na boca.
No comecinho da noite, quando se ouviu o primeiro tilintar da campainha, as mãos de Jacira estavam frias e a maquiagem não conseguia esconder  a palidez de seu rosto. Charlotte foi a primeira a descer. Recepcionou cada um dos convidados e a cada um segredava ser aquela uma noite muito especial. As meninas foram descendo mas não tinham autorização para voltar a subir. Quando a casa já estava cheia, Charlotte anunciou a novidade: tinha na casa uma menina, que se tornara mulher na semana anterior, e que aquela seria sua primeira noite. Os senhores que assim o desejassem, dariam lances e aquele que desse o maior, poderia subir as escadas com a menina. Foi um alvoroço geral. Serviu-se bebida por conta da casa e, cada vez mais entusiasmados conforme o teor alcoólico ia subindo em suas cabeças, aqueles homens jovens ou velhos caquéticos iam aumentando o valor pela prenda. A região de usinas de açúcar era frequentada por gente endinheirada. Charlotte estava encantada com os cifrões que eram enunciados em alto e bom som. O “leilão” foi vencido por um comerciante abastado, homem de seus cinquenta e poucos anos, barriga proeminente, lábios finos contrastando com as grossas lentes esverdeadas dos óculos. Arrebatou Jacira do chão e a carregou escada acima, como um troféu de batalha. Bem diferente de um príncipe num cavalo branco. Charlotte ordenou música e o movimento nas escadarias começou. Com o passar da noite, acabaram se esquecendo de Jacira, e Charlotte guardou no cofre o produto de sua “venda”.
Se o velho gostou ou não do que recebeu ou se a menina ficou aterrorizada quando a porta se fechou e ele a colocou no chão, isso ninguém soube. Na manhã seguinte Jacira levantou quando ouviu que todas já estavam circulando e os clientes já haviam ido embora. Apenas disse “Bom dia” quando foi para o banheiro tomar banho. Seu rosto de pedra nada revelou. A partir daquele dia cumpriu religiosamente o seu dever para com a casa, continuou tratando a todos com respeito mas nunca se ouviu de sua boca qualquer comentário sobre o seu trabalho, que dava bom retorno ao investimento que Charlotte fizera. Jacira não se sentia mais uma Cinderela, mas a própria Gata Borralheira e a Rainha-mãe passou a ser para ela a Madrasta.
Muitos homens passaram por sua cama durante os quatro anos seguintes. Jacira atendia-os, ao que tudo indica, a contento, pois nunca se ouviu reclamação. Os elogios, não muito exaltados, não chegaram a preocupar as outras meninas da casa.
Estava com dezoito anos quando o conheceu. O filho do coronel Salviano estivera morando no estrangeiro por cinco anos e, agora, retornava à cidade natal. Foi à casa de Charlotte para matar saudades da sua adolescência. Jacira o viu entrar e sentiu o coração pular dentro do peito.  Charlotte correu para dar as boas-vindas ao Coronezinho – era assim que o tratavam – e logo chamou por Elody, uma garota nova e de boa aparência. Jacira ficou hipnotizada, seguindo com o olhar o rapaz alto e moreno que subia as escadas com sua colega. Não viu quando ele foi embora porque estava atendendo um cliente. O Coronezinho voltou na semana seguinte e Jacira sentiu um nó apertando-lhe a garganta quando ele chamou por Elody. Por mais de um ano Jacira viu aquele rapaz entrar na sala rosa como se sentisse em casa. Ela não entendia como um príncipe podia gostar tanto daquele castelo às avessas. Lá não havia fontes e pássaros cantando. Não havia bailes e sim “leilões”. Ela já presenciara uns três depois do seu. Aquele dia terrível veio-lhe à memória mas ela afastou as lembranças. Agora havia um príncipe no castelo e ela só queria sonhar com ele. As fantasias ajudavam a disfarçar a realidade.
Era setembro e a noite pouco movimentada. O Coronezinho chegou e demorou-se um pouco na sala rosa. Algumas meninas aguardavam por cliente. Elody aproximou-se e sentou-se na mesa dele. Jacira viu quando ela levantou e foi chamar Charlotte. Percebeu que o rapaz falava com a rainha-mãe e olhava para ela. Gelou quando viu a mão de Charlotte acenando-lhe. Olhou em redor para certificar-se de que era ela mesmo que a velha chamava. Suas pernas pareciam faltar-lhe quando levantou e andou naquela direção. Charlotte apresentou-os. Dentro de poucos minutos eles estavam subindo as escadas. Jacira e o Coronezinho, ou melhor, Cinderela e o Príncipe. A moça parecia flutuar. No quarto, sorriu quando sua roupa resvalou até o assoalho e o rapaz deu um assobio baixo de aprovação. Jacira não sabia que a realeza assobiava na hora do amor. Seus braços envolveram o corpo moreno e jovem do rapaz e ela quase sentiu o roçar de uma capa.
Quando foi embora, o Coronezinho deixou, sobre a penteadeira, algumas notas  como recompensa por um trabalho bem feito. Jacira via nelas rosas brancas, quiçá um sapatinho de cristal. Seu espírito atravessara o limite do real e pairava num mundo mágico. As batidas que Charlotte deu na porta para avisar que outro cliente estava esperando não puderam mudar seu estado de ânimo. Pobre garota ingênua: usada em vez de amada, no seu conto de “fadas” justo seria substituir  a primeira vogal por um “o” e terminar a história com “destino incerto” no lugar de “final feliz”.