FOME DE SONHO
Jacira nascera pobre como
todos os vizinhos que a cercavam. Miséria esparramada pelas ruas de terra e
esgoto a céu aberto. O pai morreu tísico quando ela ainda não completara três
anos. A mãe gastava as mãos de tanto lavar roupa para poder sustentar os cinco filhos.
Em ordem decrescente de idade, Jacira era a segunda, nascida seis anos depois
da primeira filha do casal, seguida pelos gêmeos Miguel e Moacir e pelo pequeno
Jackson, que já viera ao mundo sem pai, uma vez que este deixara a mãe com
barriga quando resolveu que devia partir. porque já sofrera demais. Sem
consideração aquele homem que a menina nem chegou a conhecer direito! Morrer e
deixar seis bocas sem ter o que comer.
Bem que Augusta tentou
manter a família junto. A filha mais velha, Maria Antonia, que todos chamavam
de Tonha, com apenas dez anos, ficou incumbida de tomar conta da casa. Cuidava
dos irmãos como se fosse mãe. Tanta responsabilidade para tão pouca idade!
Augusta saía cedo, enfrentava filas nos pontos de ônibus, sempre lotados às
seis horas da manhã. Passava o dia esfregando roupa suja dos mais abastados
para comprar o que não bastava para encher o estômago das suas crianças. Aquilo
não era vida. Bem fizera o seu amado Graciliano. Nunca ela pensava nele com
rancor. Coitado, mesmo com a saúde tão frágil trabalhara até o fim para poder
dar à família um pouco de dignidade. “Que Deus o tenha”, balbuciava ela
enquanto balançava o corpo dolorido ao sabor das arrancadas e freadas do
motorista. Voltava para casa cansada e desanimada.
Naquela noite Augusta chegou e
percebeu que havia algo errado. Tonha fizera os dois meninos tomar banho e eles
já estavam na cama. O bebê chorava em seu colo enquanto a menina andava de um
lado para o outro do minúsculo cômodo, tentando acalmá-lo. Jacira, sentada na cama,
assistia a tudo sem nada entender com sua cabecinha de quatro anos. A mãe pegou
o bebê e levou imediatamente a mão à testa do pequeno rosto congestionado do
garoto. Ele ardia em febre. Augusta ordenou à franzina Tonha que enchesse uma
bacia com água morna para banhar o pequerrucho. A madrugada chegou e encontrou
o quarto iluminado pela luz fraca que vinha do abajur. As quatro crianças
dormiam enfileiradas na cama de casal que ocupava quase todo o quarto. O bebê
estava aconchegado no colo da mãe que adormecera meio torta na poltrona de pé
quebrado, que ficava a um canto. Augusta estremeceu, acordou e, ainda meio
atordoada pelo cansaço, não conseguiu se recordar de imediato porque se
encontrava ali sentada. O corpo do bebê pesava sobre o seu peito. Lembrou então
da febre e encostou a mão na fronte muito branca da criança. Estava fria. Fria
demais, concluiu. Ergueu o corpinho inerte e então soube o que acontecera. Um
grito rouco saiu de sua garganta, acordando os pequenos que sentaram na cama
assustados. Levantou-se da poltrona e chacoalhava, entre soluços, o corpo da
criança para ver se podia lhe restituir a vida. Somente Tonha se deu conta da
tragédia e chorou como se perdesse o próprio filho.
Vida maldita! Falta de dinheiro,
falta de conforto, falta de tudo. Aquelas crianças cresceram carentes de
comida, carentes de afeto. Augusta não tinha tempo de lhes dar carinho. Nem
tempo, nem vontade. A perda do marido e do caçula fizeram a sua vida ficar como
uma corda roída no começo e no fim. O passado se fora, o futuro era obscuro. Só
restava o presente sofrido. Nela, o amor murchara antes mesmo de desabrochar.
Tornou-se uma pessoa amarga, que descontava nos filhos o peso de seu
infortúnio. Tonha revoltava-se com a situação. Ela, que cuidava praticamente
sozinha dos três, nunca levantara um dedo sequer para maltratá-los. Doía-lhe no
próprio corpo ouvir o estalar das palmadas da mãe na pele fina das crianças.
Foram seis anos de discussões cada vez mais acaloradas até que o ambiente ficou
insuportável. Num domingo à tarde Tonha arrumou suas parcas roupas numa trouxa,
beijou as crianças com lágrimas nos olhos e deixou para sempre o barraco
apertado. Caiu no mundo. Jacira nunca mais ouviu falar dela. Provavelmente foi
ser prostituta num antro qualquer, muito embora sua devoção a crianças poderia
tê-la tornado uma ótima babá.
Jacira, então com dez anos, assumiu
naturalmente as funções da irmã que partira. Lavava, passava, cozinhava e
cuidava dos dois irmãos. Escola, nem pensar. Augusta ficava fora quase que o
dia inteiro e exigia tudo arrumado quando chegasse em casa. Jacira acomodou-se
com a rotina imposta.
“Ainda bem que você não é geniosa como a sua
irmã”, dizia a mãe. Eram as palavras mais carinhosas que Augusta se permitia
proferir.
Aprisionada em seu espaço reduzido,
a miúda Jacira crescia em sonhos. Quando pegava a vassoura para tirar a poeira
do cubículo em que moravam, fantasiava estar dançando uma valsa. A vassoura era
um lindo e gentil príncipe que a convidava para visitar seu castelo no alto de
uma montanha encantada. Era tirada de seu devaneio pelos gritos agudos dos
irmãos que disputavam a posse de uma bola de capotão estourada, que tinha sido
encontrada no lixo, ou pelos berros da vizinha que brigava com o marido bêbado.
Certamente na casa do príncipe não havia tanta discussão. Lá só deviam ser
ouvidos o trinar dos pássaros e o burburinho de fontes refrescantes, como
mostravam as figuras desbotadas dos velhos livros infantis que a mãe ganhava de
alguma patroa mais bondosa que achava estar fazendo um bem enorme às pobres
crianças da empregada ofertando-lhes coisas que não serviam mais pra nada
mesmo. Ah! Aquele calor infernal! Aquele cheiro podre da água parada do esgoto
que passava por trás de seu mísero lar! A realidade era dura demais para ser
levada a sério.
Depois de dois anos que Tonha fora
embora, Jacira já quase nem se lembrava do que era amor. Ele só existia em sua
cabecinha sonhadora.
Augusta começou a sentir muita
dormência nas mãos. O médico do posto de saúde disse que era problema de
coração. Era só o que faltava! Como esfregar roupa com aquelas mãos que de vez
em quando pareciam desaparecer? Ela foi ficando cada vez mais fraca, a
respiração difícil. Preocupava-se com Jacira. Os dois meninos já estavam
crescidos, eram espertos, podiam se virar catando papelão na rua em troca de um
prato de comida. Mas e Jacira? Tão frágil, tão pequena, tão avoada.
A comadre Brígida veio com a
solução. Ela não era madrinha da menina? Por que Augusta não deixava Jacira ir
morar com ela? A garota podia fazer o serviço em troca de casa e comida. Não
pensasse a comadre que ela ia ser tratada como empregada, não. Era apenas uma
troca de favores.
Agradecida, Augusta não titubeou em
aceitar a oferta. Sentia-se cada vez mais fraca e caso viesse a faltar, o que
achava que seria em breve, a filha ficaria amparada. Que alma boa, essa comadre
Brígida!
O esperado não tardou a acontecer.
Depois de dois meses que Jacira foi para a casa da madrinha, sua mãe morreu.
Incrível como o comportamento da madrinha se modificou. Ela agora se sentia a
dona da menina. Exigia que a pequena trabalhasse como um adulto, não lhe
poupando desacatos e desmandos, nunca ficando satisfeita por mais que a pequena
se esforçasse. Jacira se encolhia de medo. Ela não era de se rebelar. Não tinha
a fibra de Tonha. Como ela pensava na irmã! Seria a única pessoa no mundo com
quem poderia contar, caso ela não tivesse desaparecido. Os dois irmãos
provavelmente iriam para um orfanato. Desamparada e assustada, ela chorava toda
noite. Quando a mãe era viva, seu mundo era frio, mas agora era também negro.
Não lhe sobrara um ponto de referência. Não tinha mais família. Estava só.
De tanto ver a menina chorar, a
comadre Brígida acabou se irritando. Não queria cara feia na sua casa. Por isso
resolveu entregá-la para uma amiga sua. Ah! Lá a garota aprenderia a dar valor
à bondade da madrinha e provavelmente se arrependeria de tanta ingratidão. No
sábado, depois do almoço, mal terminaram de sair da mesa, Brígida deu ordem
para Jacira arrumar a sua mala porque as duas iriam passear.
Surpresa com a notícia, Jacira até
esboçou um sorriso. Será que a madrinha voltara a ficar boa? Apressou-se em
colocar numa sacola plástica os dois vestidos rotos que trouxera junto com
alguma roupa de baixo e o sapato gasto. Era toda a sua bagagem. Tomou o ônibus
na esquina como se fosse fazer a grande viagem de sua vida. Depois de uma hora
serpenteando por bairros desconhecidos, sacolejando em ruas cheias de buracos,
chegaram a uma avenida asfaltada, no centro da cidade. Jacira estava encantada
com as construções sólidas, bem cuidadas que via, enquanto cobriam a pé os dois
quarteirões que separavam a rodoviária da casa da amiga da madrinha, para onde
estavam se dirigindo. Tudo era tão diferente daquilo que estava acostumada a
ver: casebres pendurados em morros decadentes com crianças sujas correndo por
ruelas de barro. Aqui ela quase se sentia a princesa das suas estórias de
fadas.
Chegaram defronte a um sobrado e
tocaram a campainha. Um negro espadaúdo veio abrir a porta, perguntando a quem
deveria anunciar enquanto olhava a menina com um sorriso felino preso no canto
da boca. Parecia um gato olhando sua presa. Mas Jacira nem percebeu o sentido
oculto daquele ricto. O “Sentinela”, como mais tarde Jacira veio a saber que
era o apelido daquele homem, sumiu por detrás da porta entreaberta para logo
reaparecer e fazê-las entrar. Na sala ampla, com iluminação indireta e paredes
recobertas de cetim rosa, esperava-as um senhora de uns sessenta anos, vestida
com um négligée também rosa, de
arminho nas bordas. Jacira jamais vira alguém vestido assim. Parecia-lhe mais
uma vez estar entrando numa daquelas estórias encantadas. Aquela sem dúvida
deveria ser a rainha-mãe. Ela não sabia o quanto estava perto da verdade.
Aquela era realmente a rainha, mas de um castelo um pouco diferente do pintado
em seu livro.
Brígida falou com a amiga numa
espécie de código. Jacira não conseguia decifrá-lo. Ouviu que se falava em
dinheiro, em porcentagem, mas aquilo não lhe interessava. Ficou prestando
atenção ao movimento quase sutil do lugar, às moças que, de mãos dadas com
homens bem arrumados, subiam as escadas entre sussurros. Aquilo tudo era muito
misterioso. Nunca Jacira vira um ambiente tão sofisticado para os seus padrões,
nem pessoas tão bem vestidas. O ar tinha um cheiro adocicado de perfume e
tabaco e aquela penumbra estava lhe dando tanto sono! Acabou por dormir,
afundada na poltrona macia forrada de veludo carmim.
Quando acordou viu que estava
sozinha na sala e ficou com medo. Levantou-se num sobressalto para ver o Sentinela
de braços cruzados, em pé, ao lado da porta fechada da rua.
– Onde está minha madrinha? –
perguntou ela assustada.
– Já foi embora – respondeu seco o
homem que parecia mais negro na meia-luz da sala.
Aparvalhada, Jacira não sabia o que
fazer. Então a rainha-mãe entrou na sala e, com voz açucarada, explicou-lhe que
ela ficaria ali por uns tempos, conforme desejo da madrinha. Segurando-lhe a
pequena mão descarnada, Charlotte levou-a até um quarto que ficava depois da
cozinha.
– Aqui será o seu quarto – disse-lhe abrindo um pequeno guarda-roupa que
ficava a um canto. – E estas são as suas roupas.
– Mas eu trouxe meus vestidos –
retrucou Jacira.
– Pode jogá-los fora – argumentou a
velha ao ver os farrapos que a menina trouxera e lembrando-se que suas roupas
já tinham sido assim um dia. Com um sorriso bondoso nos lábios, Charlotte
indicou-lhe onde ficava o banheiro, entregou-lhe uma toalha cheirosa,
sugerindo-lhe um bom e demorado banho.
Jacira nunca vira tanto luxo em sua
vida. “Aquilo era mil vezes melhor que a casa da madrinha e dez mil vezes
melhor que a sua própria casa, quando ainda a tinha”, pensou. E ficou feliz por
ter sido levada para lá. Mergulhou na banheira cheia de água e ensaboou o corpo
miúdo com força como se quisesse tirar da pele as lembranças ruins. Depois de
meia hora estava com as extremidades dos dedos parecendo uvas-passas.
Enxugou-se com a toalha felpuda e estranhou ter tido tanto tempo para cuidar de
si. A madrinha ficava batendo na porta, reclamando da conta de água e de luz,
enquanto não a ouvisse desligar o chuveiro. Colocou um vestido estampado com
bolinhas pequenas e, com o cabelo escorrido, atravessou o corredor até a
cozinha.
– Ora,
ora, se não é a nossa nova hóspede que aparece – ouviu a morena Eulália
dizendo. – É melhor você ir pra sala que está todo mundo esperando a comida que
eu já vou servir.
Jacira foi atrás da mulher forte e cheirando a fritura que
seguiu para a sala de jantar carregando uma enorme travessa de bifes. Sentou-se
no lugar indicado por Charlotte que lhe disse o nome de cada uma das moças
sentadas em volta da mesa. Apresentou-lhe ainda a cozinheira Eulália e o
guardião de todas, o Sentinela.
Acabando de comer, todas as moças retiraram-se para os seus
quartos a fim de prepararem-se para a noite de sábado, que era a mais
movimentada do lugar. Charlotte explicou então a Jacira que a função daquelas
meninas, que ela queria como filhas, era fazer os homens felizes. Jacira não
deveria entrar na sala depois que o primeiro cavalheiro chegasse até que o
último saísse. Era a regra que ela deveria seguir à risca para não ter maiores
problemas. Jacira assentiu com a cabeça e foi dispensada para poder ajudar a
cozinheira a lavar a louça. Essa seria a sua função na casa: ajudar Eulália no
que fosse preciso, até ter idade para “subir de posto”. Jacira se perguntou o
que aquilo poderia querer dizer. Será que um dia ela seria a governanta daquele
lugar, como naquelas casas em que a mãe lavava roupa?
Às nove horas da noite a garota já estava em seu quarto. O
dia fora agitado e ela logo pegou no sono. Às seis da manhã, Jacira já estava
de pé, como era costume na casa da madrinha. Só encontrou Eulália, entretida
com o ferro de passar. Esta explicou-lhe que ali o dia começava cedo só para
elas duas. O Sentinela, bem como as moças e Charlotte, iam dormir quando
começava a amanhecer e, portanto, precisavam acordar tarde.
Não foi difícil para Jacira acostumar-se à nova rotina. O
trabalho pesado ficava por conta de um sujeito que vinha duas vezes por semana
fazer a faxina. Charlotte o contratara há quinze anos depois de ter tido
problemas com seu antecessor que estava sempre de olho nas meninas. Como Josué
parecia não gostar muito delas, era o ideal para estar próximo do principal
patrimônio da casa. Eulália encarregou Jacira de lavar a verdura, escolher o
arroz, lavar a louça e outras pequenas incumbências que lhe pareciam até
brincadeira perto do que a madrinha a obrigava a fazer. Como era calada e
discreta, as meninas não se importavam com a sua presença enquanto ficavam
jogando cartas e trocando confidências na sala rosa, à tarde, antes de começar
o expediente. Os assuntos mais picantes elas deixavam para quando o trabalho de
Jacira era solicitado na cozinha. Consideravam-na pequena demais para as
cruezas da vida.
Jacira passou a ser a mascote da casa. As meninas tratavam-na
como uma irmãzinha e Charlotte doou-lhe todo o seu amor maternal. Até o
Sentinela parecia existir para proteger a pequena órfã. Jacira nunca se sentira
tão feliz, tão cercada de carinho. Finalmente o reino encantado se fizera real.
Suas roupas já não eram os farrapos que costumavam cobrir-lhe o corpo
raquítico. Também o corpo já não era o mesmo: ela ganhara peso e suas faces,
antes emaciadas, tornaram-se rosadas e cheias de viço. O lugar era limpo e a
mesa bem servida. Jacira quase se esqueceu da penúria do barraco escuro e dos
gritos que as paredes finas não filtravam. O ar pútrido fora substituído pela
fragrância dos perfumes baratos. Era um grande progresso.
No seu aniversário de treze anos, Jacira assoprou, pela
primeira vez na vida, as velinhas de um bolo de aniversário. Ganhou também um
par de sapatos e um vestido novo das meninas, que se cotizaram para comprá-los.
De Charlotte, recebeu uma correntinha de ouro com medalhinha de santo. Aquilo
parecia um sonho: uma festa de verdade com guaraná e brigadeiro. E presentes. E
pessoas que sorriam para ela, desejando “Felicidades”. Aquele foi o melhor dia
de sua vida.
A primeira menstruação de Jacira aconteceu quando faltavam
dois meses para ela completar o seu décimo quarto aniversário. Estranhamente, a
madrinha Brígida apareceu para uma visita, no meio da semana seguinte.
Mostrava-se risonha e procurava aproximar-se da menina como se tivessem mantido
contato por todo aquele tempo. Depois que ela foi embora, Jacira ouviu
comentários velados das meninas sobre a presença da madrinha ali. Elas
suspendiam as conversas quando Jacira se aproximava e olhavam-na de um modo
diferente, o que fazia a adolescente pensar que estava sendo evitada. À noite,
deitada no escuro de seu quarto, Jacira chorava sem entender o que estava
acontecendo. Por que, de uma hora para outra, parecia que ela deixara de ser a
queridinha de todos?
Enxugando as lágrimas ao ouvir batidas na porta, Jacira nem
teve tempo de levantar da cama e Charlotte já se insinuava para dentro de seu
pequeno quarto.
– Por que você está
chorando? O que lhe fizeram?
Jacira tentou explicar a sua
mágoa, mas recomeçou o choro e redobrou os soluços. Vendo a angústia nos olhos
da menina, Charlotte sentou-se na beirada da cama e puxou o corpo pequeno para
junto de si. Abraçou-a, secou o seu rosto e encarando-a começou a explicar:
– Você não deve ficar triste. Deveria, sim, estar orgulhosa e feliz
porque finalmente chegou a hora de você “subir de posto”.
Jacira lembrou-se vagamente de ter ouvido a
expressão no seu primeiro dia naquela casa. Não pensara mais nela, até aquele
momento; afinal, qualquer que fosse o significado, aquilo não poderia fazê-la
mais realizada do que já era. Tinha ali tudo – e muito mais – que jamais sonhara ter um dia. Infelizmente
não sabia que aquele termo iria mudar sua vida para sempre. Charlotte pigarreou
antes de continuar:
– Você sabe que as meninas
da casa são muito bem tratadas e não querem voltar para os lugares pobres de
onde vieram. Vivem aqui com conforto porque são gentis com os senhores que nos
visitam. Agora que você já é uma mulher, deverá também agradar aqueles senhores
e com isso garantir o seu sustento, se é que você quer continuar morando aqui.
A partir de amanhã, você deverá ficar na sala rosa, junto com as meninas, e não
precisará mais ajudar a Eulália. Você tem que ser limpa e perfumada e deve
manter um sorriso nos lábios.
Jacira encarava Charlotte
com uma interrogação nos olhos. Continuar na casa. Que opção ela tinha? Não
havia outra casa para onde voltar: aquela era a sua casa. E o que a rainha-mãe
queria dizer com ela já ser uma mulher? Pelo que ela soubesse ela já nascera
mulher. Charlotte não acolhera a menina à toa. Ela até que se apegara à criança,
mas não podia deixar o coração ocupar o lugar da razão: era uma empresária e
precisava fazer seu negócio dar lucro. E Brígida não a deixaria esquecer o
acordo. Foi com esse pensamento que a velha levantou-se da cama, fechou a porta
e saiu do quarto, deixando Jacira com a cabecinha zonza por não saber nem ao
menos formular as perguntas para as dúvidas que tomavam conta de si. Sonhou com
a mãe batendo nos irmãos e brigando com Tonha. Acordou no meio da madrugada e
chorou de saudades da irmã.
Assim que as meninas se levantaram, vieram procurar por
Jacira que ficara a manhã toda sentada no banco da cozinha, acompanhando com o
olhar o trabalho de Eulália que não a deixara lavar uma xícara sequer, conforme
orientação de Charlotte. Elas a puxaram para a sala e começaram a enrolar os
seus cabelos curtos e a escolher a cor do esmalte para pintar suas unhas.
Talvez por terem experimentado cedo demais o lado amargo da vida, as meninas
haviam-na poupado, até aquele dia, de detalhes aprofundados sobre o que faziam
com os senhores distintos que as acompanhavam escada acima. Entre risinhos
maliciosos, foram despejando uma bacia de informações sobre como agir com esse
ou aquele cavalheiro, o que cada um mais gostava e etc. etc. etc. A menina
escutava e ia ficando cada vez mais apavorada. Não conseguiu colocar comida na
boca.
No comecinho da noite, quando se ouviu o primeiro tilintar
da campainha, as mãos de Jacira estavam frias e a maquiagem não conseguia
esconder a palidez de seu rosto.
Charlotte foi a primeira a descer. Recepcionou cada um dos convidados e a cada
um segredava ser aquela uma noite muito especial. As meninas foram descendo mas
não tinham autorização para voltar a subir. Quando a casa já estava cheia,
Charlotte anunciou a novidade: tinha na casa uma menina, que se tornara mulher
na semana anterior, e que aquela seria sua primeira noite. Os senhores que
assim o desejassem, dariam lances e aquele que desse o maior, poderia subir as
escadas com a menina. Foi um alvoroço geral. Serviu-se bebida por conta da casa
e, cada vez mais entusiasmados conforme o teor alcoólico ia subindo em suas
cabeças, aqueles homens jovens ou velhos caquéticos iam aumentando o valor pela
prenda. A região de usinas de açúcar era frequentada por gente endinheirada.
Charlotte estava encantada com os cifrões que eram enunciados em alto e bom
som. O “leilão” foi vencido por um comerciante abastado, homem de seus cinquenta
e poucos anos, barriga proeminente, lábios finos contrastando com as grossas
lentes esverdeadas dos óculos. Arrebatou Jacira do chão e a carregou escada acima,
como um troféu de batalha. Bem diferente de um príncipe num cavalo branco.
Charlotte ordenou música e o movimento nas escadarias começou. Com o passar da
noite, acabaram se esquecendo de Jacira, e Charlotte guardou no cofre o produto
de sua “venda”.
Se o velho gostou ou não do que recebeu ou se a menina
ficou aterrorizada quando a porta se fechou e ele a colocou no chão, isso
ninguém soube. Na manhã seguinte Jacira levantou quando ouviu que todas já
estavam circulando e os clientes já haviam ido embora. Apenas disse “Bom dia”
quando foi para o banheiro tomar banho. Seu rosto de pedra nada revelou. A
partir daquele dia cumpriu religiosamente o seu dever para com a casa,
continuou tratando a todos com respeito mas nunca se ouviu de sua boca qualquer
comentário sobre o seu trabalho, que dava bom retorno ao investimento que
Charlotte fizera. Jacira não se sentia mais uma Cinderela, mas a própria Gata
Borralheira e a Rainha-mãe passou a ser para ela a Madrasta.
Muitos homens passaram por sua cama durante os quatro
anos seguintes. Jacira atendia-os, ao que tudo indica, a contento, pois nunca
se ouviu reclamação. Os elogios, não muito exaltados, não chegaram a preocupar
as outras meninas da casa.
Estava com dezoito anos quando o conheceu. O filho do
coronel Salviano estivera morando no estrangeiro por cinco anos e, agora,
retornava à cidade natal. Foi à casa de Charlotte para matar saudades da sua
adolescência. Jacira o viu entrar e sentiu o coração pular dentro do
peito. Charlotte correu para dar as
boas-vindas ao Coronezinho – era assim que o tratavam – e logo chamou por
Elody, uma garota nova e de boa aparência. Jacira ficou hipnotizada, seguindo
com o olhar o rapaz alto e moreno que subia as escadas com sua colega. Não viu
quando ele foi embora porque estava atendendo um cliente. O Coronezinho voltou
na semana seguinte e Jacira sentiu um nó apertando-lhe a garganta quando ele
chamou por Elody. Por mais de um ano Jacira viu aquele rapaz entrar na sala
rosa como se sentisse em casa. Ela não entendia como um príncipe podia gostar
tanto daquele castelo às avessas. Lá não havia fontes e pássaros cantando. Não
havia bailes e sim “leilões”. Ela já presenciara uns três depois do seu. Aquele
dia terrível veio-lhe à memória mas ela afastou as lembranças. Agora havia um príncipe
no castelo e ela só queria sonhar com ele. As fantasias ajudavam a disfarçar a
realidade.
Era setembro e a noite pouco movimentada. O
Coronezinho chegou e demorou-se um pouco na sala rosa. Algumas meninas
aguardavam por cliente. Elody aproximou-se e sentou-se na mesa dele. Jacira viu
quando ela levantou e foi chamar Charlotte. Percebeu que o rapaz falava com a
rainha-mãe e olhava para ela. Gelou quando viu a mão de Charlotte acenando-lhe.
Olhou em redor para certificar-se de que era ela mesmo que a velha chamava.
Suas pernas pareciam faltar-lhe quando levantou e andou naquela direção.
Charlotte apresentou-os. Dentro de poucos minutos eles estavam subindo as
escadas. Jacira e o Coronezinho, ou melhor, Cinderela e o Príncipe. A moça
parecia flutuar. No quarto, sorriu quando sua roupa resvalou até o assoalho e o
rapaz deu um assobio baixo de aprovação. Jacira não sabia que a realeza
assobiava na hora do amor. Seus braços envolveram o corpo moreno e jovem do
rapaz e ela quase sentiu o roçar de uma capa.
Quando foi embora, o Coronezinho deixou, sobre a
penteadeira, algumas notas como
recompensa por um trabalho bem feito. Jacira via nelas rosas brancas, quiçá um sapatinho de
cristal. Seu espírito atravessara o limite do real e pairava num mundo mágico. As batidas que
Charlotte deu na porta para avisar que outro cliente estava esperando não
puderam mudar seu estado de ânimo. Pobre garota ingênua: usada em vez de amada,
no seu conto de “fadas” justo seria substituir
a primeira vogal por um “o” e terminar a história com “destino incerto”
no lugar de “final feliz”.