Conto a partir
da releitura do poema “JOSÉ”, de Carlos Drummond de Andrade
Maria Angela Alvares Cacioli
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Eu não lhe avisei? Cadê os amigos que viviam lhe convidando pras festas? A
festa acabou, né? A farra acabou! Eu falei pra você: amigos a gente tem
enquanto tá tudo bem. Mas você não não me deu ouvidos. Bote na sua cabeça,
filho: o povo sumiu. Seus amigos sumiram.
- Não exagera, mãe. Que mania de ficar falando mal dos
meus amigos!
-
Amigos? Alguém lembra de você? Parece que esqueceram do seu endereço, até do
seu nome. Devem zombar de você pelas costas, desses seus versos, deste seu amor
por todo mundo, desses seus protestos acalorados por causa das injustiças
sociais. Cadê sua namorada, a mulher da sua vida, pra ouvir seus poemas
apaixonados, pra lhe dar um pouco de carinho?
- No fundo ela me ama, mãe. Só ficou assustada.
- Assustada? Quem não pode beber nem fumar é você,
filho, que não tem mais forças nem pra cuspir. Ela podia arranjar desculpa
melhor pra não vir lhe visitar, em vez de dizer que a noite esfriou, que o dia
não veio, que o bonde não veio. Nem existe mais bonde! (Nem sorriso no seu
rosto). Você, que acreditava no amor, no bom, no belo. Você e sua alma de
artista. Você e suas utopias. Elas acabaram, fugiram, mofaram. E agora, José
Vitor?
- Eu tinha que viver, mãe. Tinha que experimentar o
mundo!
-
E não havia um jeito melhor, mais seguro, mais inteligente de fazer isso? Eu
cansei de falar, de lhe alertar. Adiantou? Olha você agora, José Vitor,
delirando palavras doces em seus instantes de febre. Por falar em doces, você
que gostava tanto deles fica aí, sem apetite, nesse jejum doentio. Ah! como dói
pr’uma mãe ver um filho neste estado!
- Eu vou melhorar, mãe.
Lágrimas
nos olhos da mãe que fala sem parar pra disfarçar a tristeza.
- O que eu faço com os seus livros, com sua corrente
de ouro, com seu terno novo? Não me olhe desse jeito, com ódio. Eu digo e
repito: você foi incoerente, imaturo. Um menino tão instruído, se deixando
levar assim, sem pensar nas consequências, usando drogas, compartilhando
agulhas, se contaminando.
- Eu não tenho ódio. Eu sei que errei, mãe, mas o que
eu posso fazer agora?
- Ah!, meu filho. Você tinha um emprego tão bom, tinha
a chave na mão pra abrir portas, pra progredir na vida. Não existe mais porta.
(Não existe mais vida). Você jogou tudo fora.
- Seu eu pudesse voltar atrás, pra mudar as coisas...
Mas eu não posso, mãe. Nem andar sozinho eu posso. Se não, eu ia pra Santos,
entrava no mar, ia sempre em frente, não parava mais...
- Nem fale isso, que Deus castiga. Pense que o mar secou.
- Eu queria voltar pra Minas, pra rever Mariana.
-
Pra Minas, José Vitor? Pra Minas não dá mais. Como posso tirar você dessa cama,
assim debilitado, pra fazer uma viagem? Nem que você gritasse, gemesse, tocasse
uma valsa eu não poderia levar você pra Minas. Você já falou demais, José
Vitor; deve estar cansado: olha a sua respiração como ‘tá ofegante. Seria
melhor você dormir agora.
A mãe ajeita-lhe as cobertas. (Seria
melhor se você dormisse pra sempre. Seria melhor se você morresse; mas você não
morre. Você é duro na queda, meu filho; é teimoso até pra morrer). Olha o
filho, sozinho no escuro, acuado, qual bicho-do-mato, sem fé, sem parede pra
encostar a esperança. Pensa se é pecado desejar a morte de alguém. Pensa na
morte, montada num cavalo preto a galope, levando depressa aquela agonia pra
bem longe.
Mas o cavalo refuga e marcha lentamente com José Vitor no lombo. Marcha
pra onde?