HOMENAGEM PÓSTUMA
Maria Angela Alvares Cacioli
Maria Angela Alvares Cacioli
Tenho um amigo que é poeta. Poeta e corretor de imóveis nas horas vagas. Sim, nas horas vagas, ele trabalha; no resto do tempo ele faz poesia. Vive se gabando de fazer poesia em qualquer lugar, até em velórios.
O Homero, meu amigo, diz ter herdado um pedacinho do espírito daquele outro, o da Ilíada. Ele vê motivo de versos até nas discussões, nas desgraças, na morte. Por isso não perde um enterro. Enquanto a família está ali chorando pelo defunto, lamentando a partida – não se sabe se por ter sido rápida demais ou por ter demorado tanto a chegar – o Homero senta-se numa daquelas cadeiras duras e desconfortáveis que existem nos cemitérios e deixa o pensamento vagar, procurando as palavras adequadas para suas composições.
Aquele ar alienado combina bem com seus cabelos sempre em desalinho, a figura longilínea meio encurvada, os aros pretos dos óculos com lentes de “fundo de garrafa”: jeito de cientista louco. Mas apesar da estampa, eu adoro o Homero; crescendo juntos, aprendi a aceitar suas excentricidades e admirar sua sensibilidade.
Outro dia ele recebeu um telefonema no meio da manhã. Era a secretária informando que o sogro do dono da imobiliária em que o Homero trabalha tinha morrido. Mesmo não conhecendo pessoalmente o falecido, por consideração ao patrão e como sua agenda permitia, meu “desatarefado” amigo se apressou em confirmar a presença no evento. Claro, para ele um velório é um evento, prato cheio para a inspiração.
Botou o terno escuro reservado para tais ocasiões. O costume era mal talhado; tornava-o com mais cara de desleixado do que o habitual. Creio que era o colarinho largo demais para seu pescoço fino que lhe dava um certo ar de Antonio Ermírio (que este me perdôe!). Devidamente paramentado, lá foi o Homero para o cemitério Doce Morada – imprimiram suavidade no nome para atenuar a finalidade do lugar; mas também, depois que se muda para lá, quem vai contestar se o tal configurar propaganda enganosa? Bem, meu amigo desceu do ônibus, atravessou a rua e chegou ao seu destino. Naquele cemitério há três salas de velório cujas portas se abrem para uma área comum. Como havia três pessoas sendo veladas, o pátio estava cheio de gente: parentes, amigos e os sempre presentes curiosos mórbidos – pessoas que entram em todas as salas só para dar “uma espiadinha no morto”. Procurando pelo patrão, Homero viu-o sair da segunda sala. Aproximou-se, deu-lhe o tradicional tapinha nas costas transmitindo suas condolências, entrou na sala e sentou na cadeira mais próxima da porta. Aquele cheiro de velas e flores, o som abafado das conversas foram lhe dando uma vontade irresistível de escrever. Homero pegou seu caderninho e um lápis no bolso interno do paletó, guardados ali para situações como aquela. Desligou-se do mundo e começou a rascunhar uma homenagem para o morto. Depois ensaiou mentalmente, com a impostação de voz adequada para a ocasião, as palavras enaltecedoras que escrevera sobre o homem que ali jazia. Falaria de quanto os amigos iriam sentir falta daquela pessoa bondosa, pai exemplar, sogro querido de um genro que admirava sua jovialidade, seu amor pelo esporte, como mostrava o troféu de artilheiro do time sênior de futebol do clube que ele ganhara na última temporada.
Depois da oração do padre, Homero pareceu ter saído de um transe. Levantou e, muito solene, pediu a palavra. Com a voz embargada e sob os olhos estupefatos dos presentes foi desfiando seu rosário de elogios. Chegaram os funcionários do cemitério para fechar o caixão. Uma senhora puxou o Homero de lado e perguntou se ele conhecia bem o falecido porque o homem que estava sendo velado era um vizinho dela e, pelo que ela soubesse, ele era um solteiro rabujento que detestava futebol, ainda mais por ser paraplégico.
Sem se incomodar com o vexame de ter homenageado o morto errado, o poeta distraído saiu pela porta com a sensação de dever cumprido e entrou na sala seguinte para render preito ao sogro do patrão com o discurso pronto no bolso do paletó!